Da revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa

A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa.

 

Com o advento da Lei nº 14.230/21 não são considerados ímprobos os atos de “improbidade culposa”, deste modo a tipificação da improbidade administrativa exige o dolo específico, tendo sido excluído o elemento volitivo atinente à culpa grave, antes admitido para a caracterização das hipóteses previstas no artigo 10 da Lei nº 8.429/92.

Ainda sobre o ato culposo insta transcrever o entendimento de Daniel Amorim Assumpção Neves e Rafael Carvalho Rezende Oliveira: [1]

Isto não significa dizer que todo e qualquer deslize no dia a dia da Administração venha a configurar improbidade administrativa. Existem graus de violação à ordem jurídica que são sancionados com intensidades distintas. A mera irregularidade administrativa comporta sanção administrativa, mas não sanção de improbidade. A interpretação da legislação de improbidade deve ser feita à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, tanto na tipificação das condutas quanto na aplicação das sanções. O erro administrativo não pode ser confundido com a improbidade administrativa. A mera irregularidade administrativa comporta sanção administrativa, mas não sanção de improbidade.” (grifo nosso).

Sobre a boa-fé do chefe do Poder Executivo é importante trazer a lição do saudoso HELY LOPES MEIRELLES em sua obra Direito Municipal Brasileiro:

“Ao prefeito, como aos demais agentes políticos, impõe-se o dever de tomar decisões governamentais de alta complexidade e importância, de interpretar as leis e de converter seus mandamentos em atos administrativos das mais variadas espécies. Nessa missão político-administrativa, é admissível que o governante erre, que se equivoque na interpretação e aplicação da lei, que se confunda na apreciação da conveniência e oportunidade das medidas executiva sujeitas à decisão e determinação. Desde que o chefe do Executivo erre de boa-fé, sem abuso de poder, sem intuito de perseguição ou favoritismo, não fica sujeito a responsabilização civil, ainda que seus atos leses a Administração ou causem danos materiais ou morais a terceiros. E assim é porque os agentes políticos, no desempenho de suas atribuições de governo, defrontam-se a todo momento com situações novas e circunstancias imprevistas, que exigem pronta solução, à semelhança do que ocorre na Justiça, em que o juiz é obrigado a decidir ainda que na ausência ou na obscuridade da lei. Por isso mesmo, admite-se para essas autoridades uma margem razoável de falibilidade. […] Como agente político, o chefe do Poder Executivo local só responde civilmente por seus atos funcionais se os praticar com dolo, culpa manifesta, abuso ou desvio de poder. […] (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro – 19. Ed./atualizada por Giovani da Silva Corralo – São Paulo: Malheiros, 2021. pág.643).

Como observa-se a alteração legislativa determina a necessidade de ser dolosa a conduta, mas, além disso, houve ainda a preocupação em estabelecer a abrangência da palavra “dolo”, sendo considerada a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado”, não bastando a voluntariedade do agente.

Afinal, a intenção da Lei de Improbidade Administrativa é coibir atos praticados com intenção lesiva à Administração Pública e não apenas atos que, embora ilegais ou irregulares, tenham sido praticados por administradores inábeis sem a comprovação de má-fé ou deliberada desonestidade.

Nesse esteio, imperioso destacar que não havendo demonstração efetiva de que o ex-prefeito agiu com intenção de favorecimento ou de burlar o procedimento licitatório, não há falar em dolo e consequentemente em ato de improbidade.

Além disso, considera-se o dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente (§2º do art. 1º incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).

Com efeito, conforme prescrição expressa do §3º do art. 1º incluído pela Lei nº 14.230, de 2021, o mero exercício da função ou desempenho de competências públicas, sem comprovação de ato doloso com fim ilícito, afasta a responsabilidade por ato de improbidade administrativa.

Aliás, esse entendimento foi inserido nas alterações trazidas na Lei de Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230, de 2021, no §1º, do Art. 17-C, conforme abaixo transcrito:

Art. 17-C […]

  • §1º A ilegalidade sem a presença de dolo que a qualifique não configura ato de improbidade. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021) (g.n)

Para tanto, indispensável a presença de dolo ou má-fé na conduta do agente público, quando da prática do ato ímprobo, circunstância, agora reforçada pelas alterações introduzidas pela Lei nº 14.230/2021, dentre as quais a que determina a aplicação ao sistema da improbidade dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 1º, § 4º, da Lei nº 8.429/1992). Vejamos:

Art. 1º […]

  • §1º Consideram-se atos de improbidade administrativa as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, ressalvados tipos previstos em leis especiais. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
  • §2º Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)

  • §4º Aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador.

Como observa-se a alteração legislativa determina a necessidade de ser dolosa a conduta, mas, além disso, houve ainda a preocupação em estabelecer a abrangência da palavra “dolo”, sendo considerada a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado”, não bastando a voluntariedade do agente.

 

Neste contexto, importante ressaltar que os Ministros do Supremo Federal Tribunal, em 18 de agosto de 2022, em continuidade ao julgamento do Tema 1199, se pronunciaram decidindo pela aplicação da Lei n.º 14.230 de 2021, a qual expressamente exige dolo, para os casos ainda pendentes de julgamento no sistema judiciário brasileiro, ou seja, aqueles que ainda não transitaram em julgado, como é o caso dos autos.

 

No julgamento do ARE 843989, o Supremo Tribunal Federal,  por unanimidade, apreciando o tema 1.199 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário para extinguir a ação, e, por maioria, o Tribunal acompanhou os fundamentos do voto do Ministro Alexandre de Moraes (Relator), vencidos, parcialmente e nos termos de seus respectivos votos, os Ministros André Mendonça, Nunes Marques, Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Na sequência, por unanimidade, foi fixada a seguinte tese:

 

“1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se – nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA – a presença do elemento subjetivo – DOLO

 

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 – revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

 

3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;

 

4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei”. (STF, Plenário, 18.8.2022, grifo nosso)

Inclusive, faz-se necessário colacionar abaixo algumas jurisprudências recentes do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já com base nas novas alterações da Lei nº 14.230/21, a saber:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – AÇÃO POR IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA – AQUISIÇÃO DE MEDICAMENTOS SEM LICITAÇÃO – DANO AO ERÁRIO E OFENSA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS – DOLO – SUPERVENIÊNCIA DA LEI Nº 14.230/21 – APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR AO SISTEMA DE IMPROBIDADE – RETROATIVIDADE DA NORMA MAIS BENÉFICA. 1. O propósito da Lei de Improbidade Administrativa é coibir atos praticados com manifesta intenção lesiva à Administração Pública e não apenas atos que, embora ilegais ou irregulares, tenham sido praticados por administradores inábeis sem a comprovação de má-fé. Ausência de dolo. 2. Da ilegalidade ou irregularidade em si não decorre a improbidade. Para caracterização do ato de improbidade administrativa exige-se a presença do elemento subjetivo na conduta do agente público. 3. Ação civil pública por improbidade administrativa. A Lei n.º 14.230/2021 promoveu profundas alterações na Lei de Improbidade Administrativa, dentre as quais a supressão das modalidades culposas nos atos de improbidade. Novatio legis in mellius. Retroatividade. Aplicação dos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 1º, § 4º, da Lei nº 8.429/1992). 4. Para caracterização do ato de improbidade administrativa faz-se necessário dolo do agente, assim entendido como a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 da LIA, não bastando a voluntariedade do agente ou o mero exercício da função ou desempenho de competências públicas. Ausência de prova de dolo dos réus. Ação civil pública improcedente. Sentença reformada. Recursos providos.  (TJSP;  Apelação Cível 1001271-61.2018.8.26.0498; Relator (a): Décio Notarangeli; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Público; Foro de Ribeirão Bonito – Vara Única; Data do Julgamento: 18/04/2022; Data de Registro: 18/04/2022) – (g.n)

AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. Nomeação para cargos em comissão. Cargos comissionados que não possuem características de chefia, direção ou assessoramento, mas sim típicas atribuições técnicas, administrativas e burocráticas. Exoneração dos servidores ocupantes dos aludidos cargos em comissão e nulidade das respectivas portarias de nomeação. Investidura dos cargos que se deu de forma irregular. Imposição de sanções por improbidade que, no entanto, restou inviabilizada. Superveniência da Lei nº 14.203/2021, que reduziu o âmbito de incidência do art. 11, da Lei de Improbidade Administrativa a rol taxativo de hipóteses. Procedência parcial da ação, com acréscimo de nulidade das portarias de nomeações. Recurso do Ministério Público provido em parte e recurso do Município não provido.   (TJSP;  Apelação Cível 1004942-78.2020.8.26.0189; Relator (a): Bandeira Lins; Órgão Julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Foro de Fernandópolis – 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/04/2022; Data de Registro: 13/04/2022) – (g.n)

Portanto, uma vez ausente o elemento subjetivo imprescindível para a caracterização do ato de improbidade administrativa (dolo específico), incabível a condenação às penas previstas no artigo 12,  da Lei nº 8.429/1992, com as alterações da Lei nº 14.230/21.

[1] Improbidade administrativa: direito material e processual / Daniel Amorim Assumpção Neves, Rafael Carvalho Rezende Oliveira. – 8. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.

 

Dra. Bruna Parizi Yoshimoto | OAB/SP n.º 313.667 | Procuradora Legislativa | Advogada | Especialista em Direito Administrativo

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